Palco de grandes corridas, autódromo José Carlos Pace é motivo de orgulho para os brasileiros
Escrito por Brenda Marques e Isadora Guerra
A história do Autódromo José Carlos Pace, conhecido como Interlagos, em São Paulo, enche os olhos dos brasileiros de lágrimas e o coração de nostalgia. É um misto de emoções e de lembranças, umas boas e outras nem tanto. Por óbvio, para que todos esses sentimentos pudessem aflorar nos fãs de automobilismo, um templo se fez necessário. E de repente o Brasil tinha um dos circuitos mais relevantes e tradicionais das temporadas da F1.
Como surgiu o projeto
Na década de 1920, o engenheiro britânico Louis Romero Sanson, dono da empresa de construção Auto-Estradas, visto como um futurista, planejou a construção de um resort entre as represas de Guarapiranga e Billings, em São Paulo. Junto a ele, o urbanista francês Alfred Agache viu uma semelhança da região sul de SP com Interlaken, na Suíça. Começou a nascer, então, o projeto do bairro Balneário Satélite da Capital, ponto destinado à alta sociedade. Aí que entrou o bairro Interlagos. Eles queriam abrir o acesso ao local para transformá-lo no tal do balneário, e levantar um hotel maravilhoso, praia artificial na represa e, finalmente, um autódromo! Além de casas, o local também teria centros de lazer e um ginásio esportivo.
O plano ia bem até estourar a crise de 1929, nos Estados Unidos, e a revolução de 1932, em São Paulo. Sem dinheiro, o projeto esfriou e só passou a ganhar força no meio da década seguinte e graças ao sucesso que as corridas de automóveis passaram a obter no país (eixo Rio/São Paulo). Em 1936, SP recebeu sua primeira prova internacional, mas o circuito foi as próprias ruas da capital. E após a (má) repercussão do acidente da piloto francesa Hellé-Nice, que perdeu o controle de seu Alfa Romeo e acabou atropelando e matando cinco pessoas (ferindo mais de 30), Interlagos chamou a atenção novamente. Juntos, o trágico acidente e a paixão pelo automobilismo não deixaram morrer a necessidade da cidade ter um autódromo.
A inauguração
Tendo o Automóvel Clube do Brasil como parceiro na elaboração do projeto, Sanson priorizou a criação e construção do circuito de Interlagos em um traçado inspirado nas pistas de Indianápolis (Estados Unidos), Brooklands (Inglaterra) e Monthony (França). A construção do autódromo foi cercada de grande expectativa. Em abril de 1939, com a pista ainda em obras, um grupo de pilotos liderado por Manoel de Teffé deu as primeiras voltas. Porém, a população ainda teve que esperar mais um ano para a grande inauguração, adiada em duas ocasiões no mês de novembro daquele ano.
Com a estrada de Interlagos aberta e a ponte de madeira sobre o Jurubatuba, Sanson inaugurou um grande e espaçoso estacionamento para carros e o Hotel Interlagos para receber os turistas. Depois de alguns adiamentos, em uma festiva e aguardada tarde do dia 12 de maio de 1940, finalmente o autódromo foi inaugurado! A abertura contou com a disputa de uma prova preliminar entre motocicletas, de 12 voltas na pista completa, totalizando 96km, e o Grande Prêmio São Paulo, destinado a automóveis de corrida, de 25 voltas na pista completa e 200km de percurso. Uma multidão de 15 mil pessoas compareceu à inauguração.
Uma curiosidade: o autódromo foi inaugurado sem que o projeto original estivesse concluído. Então não havia arquibancadas, boxes, guard-rails, lanchonetes, banheiros, torre de cronometragem e de transmissão. A entrada principal não passava de um portão feito com algumas ripas de madeira, onde só passava uma pessoa de cada vez. Ao lado, a bilheteria era um pequeno barraco de alvenaria. Não tinha pavimentação e o chão era de terra batida. Tudo ocorreu na base do improviso, mas a pista estava lá e Interlagos foi aprovado para receber corridas pelo Automóvel Club do Brasil.
Traçado original
O traçado, na verdade, foi desenhado para oferecer duas versões. Uma era um anel externo, para ser de alta velocidade, com 3.250 metros. O outro era o chamado circuito completo que, contando com o setor do miolo, de 4.750 metros, totalizava os 8 mil metros de extensão. Outra novidade para a época é que se corria em sentido anti-horário ou, como diziam, contra os ponteiros do relógio.
Não à toa, o engenheiro Sanson e sua equipe escolheram um local bastante apropriado para receber a pista. O terreno formava uma espécie de bacia cercada por morros mais altos. O traçado foi construído no fundo dela e as partes mais altas recebiam o público, que tinha uma visão de quase 90% da pista. Para ligar o setor mais alto perto da entrada ao local (reservado para os carros e suas equipes) ao paddock (parte mais baixa), onde hoje é a Reta dos Boxes, foi construída uma passarela de madeira, também utilizada para transporte de material de publicidade e como ponto de largada/chegada das provas.
Os carros largavam dali e partiam para a curva 1, onde poucos metros depois havia um bosque de eucaliptos sem nenhuma proteção que impedisse um choque no caso de uma saída da pista. Depois, sempre em alta velocidade, vinha a curva 2, o retão, as curvas 3, 4 e uma pequena reta até chegar à Curva da Ferradura, trecho de média velocidade. A aceleração voltava a crescer na descida para a Curva do Lago, que existe até hoje, e era em subida, como a Reta Oposta, que desembocava na Curva do Sol, de altíssima velocidade. Era chamada assim porque nos fins da tarde os pilotos tinham de encarar o sol de frente. Na saída dela, outra descida para a Curva do Sargento (homenagem a um militar que ali morreu atropelado), onde a freada era forte.
Depois dela, os pilotos subiam a Curva do Laranja, denominada assim porque alguns pilotos não conseguiam contorná-Ia com o pé embaixo. Surgia então a parte mais lenta do traçado. A Curva do S, de baixa velocidade, emendava na Curva do Pinheirinho (porque realmente havia um par de pinheiros bem ali, ao lado da pista) e na Curva do Cotovelo (que depois virou Bico de Pato pelo seu formato mesmo, parecido com o bico da ave), a mais lenta da pista.
Depois dela, a velocidade aumentava novamente na descida da Curva do Mergulho (porque o carro seguia bem em direção ao lago), seguia uma reta curta até a Curva da Junção (porque ela ficava na interseção como anel externo), até a Curva do Café, também chamada por alguns como a Curva da Vitória (por ser a última antes da Reta dos Boxes), onde tudo começava novamente.
Primeira reforma
No final de 1967, o autódromo foi fechado para reformas e voltou a funcionar no dia 29 de fevereiro de 1970, ainda que não estivesse totalmente pronto, mas em grande estilo, com a realização de uma corrida do Campeonato Internacional de Fórmula Ford. Para delírio do público, a vitória foi do brasileiro Emerson Fittipaldi. A pista foi recapeada, novos boxes foram erguidos e havia arquibancadas para 20 mil torcedores. Porém, com a visibilidade e o crescimento alcançado, o acesso ao autódromo virou um problema.
Assim, Interlagos teve de passar por outra reforma em 1971 para abrigar, no ano seguinte, pela primeira vez, um Grande Prêmio da Fórmula 1. Recebeu alambrados nas áreas dos boxes, zebras na pista, túnel para acesso ao interior do circuito, um edifício de quatro andares para abrigar as transmissões de rádio e televisão e uma tribuna de honra. Também foram executadas obras para instalar galerias de águas pluviais, guias, sarjetas, entre outras modernizações. Em outubro de 1971 foi realizado o primeiro grande teste de Interlagos, uma corrida internacional de Fórmula 2 extra-campeonato, também vencida por Emerson Fittipaldi. O objetivo era que a pista fosse homologada e passasse a fazer parte do calendário oficial da categoria mais rápida do planeta: a F1.
A chegada da F1
Com o circuito já testado pelos dirigentes da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), em 1972 a Fórmula 1 finalmente chegou a Interlagos, ainda sem ser uma etapa oficial. Como não contava pontos para o campeonato, nem todas as equipes vieram para São Paulo. Então correram quatro pilotos brasileiros e mais oito estrangeiros. Já em 30 de março de 1972, o autódromo sediou pela primeira vez uma corrida válida pela categoria. A competição, entretanto, não contou pontos para o campeonato mundial. Quem venceu foi o argentino Carlos Reutemann, seguido pelo sueco Ronnie Peterson e pelo brasileiro Wilson Fittipaldi Jr. Com o sucesso do evento, o Brasil passou a integrar, já no ano seguinte, o calendário oficial do Campeonato Mundial de Fórmula 1. A primeira prova brasileira aconteceu em 11 de fevereiro de 1973 e foi vencida por Emerson Fittipaldi, seguido pelo escocês Jackie Stewart e pelo neozelandês Dennis Hulme.
Aprovado, Interlagos foi sede do GP Brasil de F1 de 1973 até 1977. Em 1978, o GP foi disputado em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Em 1979 e 1980, voltou para Interlagos. No ano seguinte, retornou ao Rio porque a prefeitura de São Paulo estava sem verbas para deixar o evento e o autódromo nas condições exigidas pela FIA. Nesse período, o Interlagos recebeu campeonatos como os de Fórmula Ford, 2 e 3, Fórmula VW, Turismo e Stock Car, por exemplo.
Modernizações
No final de 1989, foi a vez do RJ ficar sem dinheiro e o GP voltou a SP. Mais uma vez, o autódromo passou por uma série de reformas, como construção de novos boxes e torre de controle e o encurtamento do percurso dos 8km para os 4,3km, de acordo com a tendência de circuitos com no máximo 4,5km de extensão. Também foram construídos 23 novos boxes, nova sala de imprensa, sala para fotógrafos, torre de cronometragem e de direção de prova, um moderno centro médico e instalações de apoio para as equipes e prestadores de serviço. A reabertura aconteceu no dia 23 de março de 1990. A corrida foi vencida pelo francês Alain Prost, seguido pelo austríaco Gerhard Berger, com Ayrton Senna em terceiro.
No início de 2000, a pista foi recapeada e diminuiu de novo, dessa vez para 4.309 metros de extensão. Em 2002, algumas caixas de brita foram asfaltadas no “S do Senna”, na Curva do Lago e na do Laranjinha. Em 2007, a pista foi refeita para retirar desníveis e irregularidades recebendo um asfalto com uma tecnologia mais moderna, instalação de dutos de drenagem e nova entrada para os boxes. Na Curva do Mergulho, uma área de escape, mais segura, foi construída, além de arquibancadas fixas de concreto na Reta dos Boxes, que aumentaram a capacidade para 25 mil torcedores, com banheiros e salas multiuso na parte de baixo.
Em 2008 foi feita a construção de mais um outro módulo de arquibancadas fixas para mais 10 mil espectadores, além da cobertura em definitivo da área do paddock, a construção de um novo hospital dentro dos padrões exigidos pela Fórmula 1 e a construção de duas áreas, com 5.000 metros quadrados, para abrigar os HCs. Em 2009 foram feitas reformas de infraestrutura em vários pontos de Interlagos e uma alteração do muro na Curva do Café, com o objetivo de oferecer mais segurança aos pilotos. Em 2014, foi feita uma nova grande obra criando novos boxes na reta oposta e alterando o circuito. Em 2020, o Autódromo de Interlagos completou 80 anos de história e ganhou também um mural feito pelo artista Eduardo Kobra, com a imagem do ídolo Ayrton Senna.
Do circuito antigo até hoje, nasceram campeões, vários recordes foram quebrados, as pessoas vibraram nas arquibancadas, seja no sol ou na chuva. As condições meteorológicas em Interlagos são, inclusive, uma peculiaridade. No mesmo dia, a região pode amanhecer com neblina, frio, o tempo abrir e fazer sol no meio do dia e chover torrencialmente à tarde. Assim também é a pista de Interlagos: imprevisível e emocionante!
José Carlos Pace
O nome do autódromo faz referência a um dos maiores pilotos da história brasileira na F1, que morreu prematuramente quando começava a ser firmar como um dos protagonistas da categoria no final da década de 1970. Nascido em 6 de outubro de 1944, o paulistano José Carlos Pace ascendeu rapidamente no automobilismo nacional. Aos 20 anos, foi um dos escalados para o histórico desafio dos 50 mil quilômetros, que colocou um Renault Dauphine para correr em Interlagos dentro de um prazo estabelecido de 30 dias. Revezando-se com Bird Clemente, Wilsinho Fittipaldi e Luiz Pereira Bueno, entre outros, Pace terminou o desafio em 22 dias.
Internacionalmente, Pace foi campeão de uma das categorias da Fórmula 3 britânica em 1970, chegou à Fórmula 2 europeia em 1971 e estreou na Fórmula 1 em 1972, pilotando um dos carros da Williams. José Carlos Pace conquistou a primeira vitória da carreira na F1 ao vencer o GP do Brasil em 1975.
Tudo parecia promissor, até que veio um desfecho trágico. Em 18 de março de 1977, Pace morreu aos 32 anos devido à queda de um avião particular na cidade de Mairiporã, na Grande São Paulo. Em homenagem ao piloto, a Prefeitura de São Paulo mudou em 1985 o nome do Autódromo de Interlagos, que passou a se chamar Autódromo José Carlos Pace. Assim, mesmo sem ter sido campeão, Pace (que é lembrado com um busto na entrada de Interlagos) se tornou um nome fundamental para o automobilismo brasileiro.
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